Há um ano, funcionava a todo vapor dentro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, uma marcenaria. Tinha funcionários, subchefe e chefe de setor. O que, à primeira vista, parecia um departamento completamente estranho ao trabalho do tribunal, tinha uma função essencial: reparar balcões e armários trincados e consertar cerca de 50 portas que eram quebradas por mês.
A quebradeira era causada pelo entra e sai de gaiolas de ferro abarrotadas de processos nos gabinetes de ministros e nas repartições do STJ. Eram mais de 400 mil processos em andamento. Colocadas umas sobre as outras, as folhas dos processos somavam 12 quilômetros _o comprimento de 120 campos de futebol.
Os processos simplesmente não cabiam mais no prédio do tribunal. “Havia salas nas quais os funcionários tinham de andar sobre os processos, sem qualquer exagero”, afirma Francisco Lima Coutinho, coordenador de registro de processos recursais do tribunal. Coutinho é o responsável por cuidar dos recursos que chegam ao STJ de 32 tribunais do país: 27 tribunais de Justiça e cinco tribunais regionais federais.
Hoje, o coordenador também organiza o projeto de digitalização dos processos, que é a menina dos olhos do presidente do tribunal, ministro Cesar Asfor Rocha. O ministro promete que, até maio deste ano, fará o enterro do processo em papel. “Os processos de todos os tribunais chegarão ao STJ por meio eletrônico”, afirma (leia entrevista com o presidente do STJ).
A primeira etapa do projeto, ambicioso, está prestes a ser concluída. Dos 32 tribunais do Brasil, 29 já enviam seus processos eletronicamente ao tribunal. Apenas os tribunais de Justiça de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo ainda não aderiram ao sistema. Aí mora um problema. Os três tribunais são responsáveis por 60% da carga de trabalho do STJ. O TJ gaúcho, contudo, deve entrar no sistema no próximo mês. Faltarão os outros dois estados.
Para forçar quem ainda não se animou com a ideia a implantar o processo digital, o STJ baixará em breve uma resolução para, a partir de abril, só receber processos por meio digital. “Não haverá alternativa”, afirma Asfor Rocha. Hoje, a marcenaria do STJ está fechada. Os servidores que lá trabalhavam foram realocados no trabalho de digitalização e em outras áreas. Os números mostram o impacto da tecnologia no cotidiano do tribunal.
Tempo e dinheiro
Quando é enviado fisicamente ao STJ, o processo percorre uma verdadeira via crucis que pode durar até oito meses (veja ilustração). Até um ano atrás, depois destes oito meses, ainda ficava mais sete meses parado na fila de distribuição. Ou seja, só para sair de uma das salas do tribunal e chegar ao gabinete do ministro que iria julgá-lo.
Em outras palavras, gastava-se quase um ano e meio para o recurso sair do tribunal e começar a ser analisado pelo STJ. A burocracia insana revela porque os processos no Brasil levam, em média, mais de dez anos para chegar ao fim. Hoje, todo o processo de envio do recurso e distribuição dura apenas um dia quando o tribunal local o manda eletronicamente para Brasília.
Não há estimativas sobre a economia de dinheiro que o projeto já trouxe ou trará aos cofres públicos. Mas alguns dados dão uma boa ideia. Por ano, gastava-se R$ 20 milhões só com os Correios para os processos chegarem ao STJ e, depois, voltarem para os tribunais de segunda instância. Essa despesa, que já foi reduzida, não existirá mais em breve.
Outro dado revela que todos os dias chegavam armários comprados para armazenar os 1.200 processos diários que também desembarcavam no tribunal. Hoje, o caminho é inverso. No lugar de processos, os corredores estão abarrotados de armários vazios que são doados para outros órgãos da administração pública. “Ainda não foi possível mensurar o impacto financeiro disso, mas é significativo”, diz Asfor Rocha.
O maior ganho, contudo, está em pequenos detalhes que, somados, certamente farão os processos andarem muito mais rápido. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas feito em 2007, a pedido da Secretária de Reforma do Judiciário, mostrou que 80% do tempo de um processo é perdido no cartório. É o chamado tempo morto. O tempo que leva para um despacho ser juntado aos autos, para o processo sair do gabinete do juiz e voltar à prateleira, para chegar ao gabinete de um ministro que pediu vista durante o julgamento.
O processo digital acaba com a maioria desses trâmites burocráticos e lentos. “Qualquer juntada de petição levava dias entre o protocolo e o gabinete”, atesta Asfor Rocha. Outro exemplo: quando um ministro pedia vista do processo durante o julgamento, os autos demoravam até um mês só para chegar ao gabinete dele. “Quando chegavam, ele nem se lembrava porque havia pedido vista”, afirma Asfor Rocha. Com o processo digital, o ministro sai do julgamento, volta ao gabinete e já pode, se quiser, analisar o caso.
Há mais uma vantagem. O processo eletrônico é indexado. Ou seja, na tela do computador, há um índice com cada parte do recurso. Antes, para achar determinada petição ou documento, o ministro tinha de folhear o processo até encontrar. “Imagine um processo com cinco volumes, 500 páginas… Hoje, o ministro clica no índex e abre automaticamente o que ele procura na tela do computador”, diz. “É muito mais rápido.”
Menos processos
Apesar de não estar concluído, o projeto já mudou a realidade do STJ. Há 20 anos, quando foi instalado, o tribunal recebeu pouco mais de seis mil processos de todo o país. No ano passado, foram quase 300 mil. A avalanche de ações que só crescia fazia com que o tribunal sempre terminasse o ano com mais processos do que tinha em estoque no início.
Depois de quase um ano de processo eletrônico, o estoque diminuiu de 400 mil processos para 240 mil, que estão hoje em andamento no tribunal. Desse total, 180 mil tramitam em meio eletrônico. “Até o fim de abril, todo o estoque estará digitalizado”, diz Asfor Rocha.
Atualmente, os ministros têm mais controle de seu estoque de processos, o que evita que muitos se percam no tempo. É possível a cada juiz saber precisamente qual a situação de cada um dos processos de seu gabinete. Quantos estão com os advogados, quantos com o Ministério Público, quantos com outros ministros que pediram vista. Soa óbvio dizer que isso tem de ser feito. Mas o fato é que não era.
A esfera federal do Judiciário é a mais adiantada no processo de digitalização. Um acordo dos cinco tribunais regionais com o Conselho da Justiça Federal fará com que as varas de primeira instância também remetam eletronicamente aos tribunais de segundo grau todos os processos. Segundo Asfor Rocha, a partir de abril, isso já estará acontecendo em toda a primeira instância federal. “Em Santa Catarina, 80% das varas federais de primeira instância já estão digitalizadas”, diz o ministro.
Na Justiça Estadual, a situação é mais complexa. Se a adesão de alguns tribunais estaduais é difícil, a das varas de primeira instância deve levar ainda mais tempo. Apesar disso, o ministro Asfor Rocha se mostra otimista: “o principal obstáculo era mostrar as vantagens de instituir o processo eletrônico. Isso foi feito com fartura. Agora, o caminho da digitalização é natural porque não há qualquer razão lógica ou econômica para que toda a Justiça não adira ao processo eletrônico”.
Rodrigo Haidar, iG