Passados exatos 130 anos da sanção da Lei Áurea pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, os brasileiros ainda convivem com a escravidão ou com uma condição análoga a ela rotineiramente e a desigualdade entre negros e brancos continua escandalosa. A lei imperial 3.353 solucionou o grande problema da liberdade dos escravos, mas manteve os indivíduos das duas raças profundamente desiguais e sem condições de competir, com permanente desvantagem para os negros — empurrados para o ponto mais baixo da pirâmide social. O Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão — o penúltimo foi Cuba, em 1885. E também foi o lugar que mais recebeu escravos africanos ao longo de sua história. Calcula-se que entre 1550 e 1860 cerca de 4,8 milhões de pessoas tenham sido trazidas contra a vontade da África para o Brasil. As relações de poder do velho sistema se entranharam na cultura nacional e deixaram um passivo gigantesco de injustiça e preconceito, encoberto pelo mito da democracia racial, que até hoje não foi superado.
“A Lei Áurea foi uma lei muito breve, muito conservadora, não veio acompanhada de nenhum projeto de inclusão social e nem foi capaz de redimir desigualdades assentadas ou apagar hierarquias naturalizadas”, diz a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, organizadora, junto com Flávio dos Santos Gomes, do “Dicionário da Escravidão e Liberdade” (Companhia das Letras), lançado a propósito da efeméride abolicionista. “E o racismo estrutural que experimentamos hoje no Brasil não é só herança — novas formas de racismo estão sendo construídas e se expressam na educação, na saúde ou nos números da violência contra os jovens.” Em muitos aspectos, a Lei Áurea condenou uma grande parte da população a permanecer nas margens da sociedade. A condição de trabalho do liberto continuou extremamente precária e para o negro não houve nenhum tipo de proteção legal, trabalhista e social.
A situação atual do mercado de trabalho é exemplar da desigualdade entre brancos e negros e escancara um preconceito racial na ocupação das vagas de emprego, na distribuição dos cargos e na remuneração. Segundo os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), os salários dos trabalhadores brancos são, em média, 80% superiores ao dos negros. Considerando todas as ocupações, enquanto um branco tem um ganho real de R$ 2 660, a renda do negro é de R$ 1 461 e a dos pardos, R$ 1 480. Mais grave: a escolaridade não basta para equiparar renda de brancos e negros. Conforme ela aumenta, maior a diferença salarial, de acordo com pesquisa da Fundação Seade/Dieese. Entre os trabalhadores com ensino médio completo, na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, os negros receberam 85% do valor ganho pelos brancos, em 2016. Segundo o relatório “A distância que nos une”, realizado pela Oxfam, ONG dedicada ao combate da pobreza e da desigualdade no mundo, em 2017, 67% dos negros brasileiros receberam até 1,5 salário mínimo, enquanto menos de 45% dos brancos estão nessa faixa salarial. Mantido o ritmo de inclusão observado no período, a equiparação.
“Além de acentuar desigualdades, o racismo também traz consequências violentas”, diz Tauá Pires, coordenadora de programas da Oxfam. Homens jovens e negros são as maiores vítimas de homicídios no país, segundo o Atlas da Violência 2017 produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. O feminicídio, o assassinato de mulheres por razões de gênero, atinge principalmente mulheres negras.
Negros e negras também são vítimas frequentes de ofensas e injúrias raciais. É o caso do empresário Luiz Henrique da Silva, 33 anos, que, em abril de 2017, foi com a família fazer compras em um mercado de Pirituba e foi violentamente ofendido. Ele vestia um agasalho da torcida Gaviões da Fiel e precisava comprar ingredientes para fazer cachorro quente na casa de amigos. Porém, os planos dele mudaram quando, na fila do caixa, ele foi xingado por uma mulher branca que estava na frente dele por ter supostamente batido o carrinho na perna dela. Ele pediu desculpas, mas isso não impediu que a mulher se virasse para a caixa do mercado e falasse: “Além de corintiano, é preto.” Depois de digitar a senha, ela teria, então, dito para ele: “Preto, macaco, filho da p…, ladrão.” A polícia foi chamada e Luiz registrou um boletim de ocorrência contra a mulher por injúria racial. Mais de um ano depois, o empresário afirma que o caso ainda o abala: “Me sinto como todos os negros do mundo: injustiçado. Não vejo a hora desse pesadelo acabar”, afirma.
Estima-se que 160 mil pessoas no Brasil sofram, atualmente, com condições de trabalho análogas à escravidão. Negros e pardos, de acordo com dados do Ministério Público do Trabalho, representam mais de 64% das cerca de 43 mil pessoas que foram resgatadas dessa situação degradante entre 2003 e 2017. Segundo a procuradora da República Ana Carolina Roman, é possível identificar o trabalho escravo contemporâneo quando o trabalhador tem jornadas de trabalho exaustivas, servidão por dívidas, retenção de documentos, confusão do local de moradia com o de trabalho, ameaças e muitas outras situações que tiram a dignidade do ser humano.
“Ainda há segmentos da sociedade que não consideram a população negra como humana. É por isso que a submete a condições de trabalho análogas à escravidão”, afirma Juarez Xavier, professor da Universidade Estadual Paulista. (Unesp), que vê no País uma situação de “apartheid social”. Essa visão é compartilhada por Leci Brandão (PC do B), segunda mulher negra na história a se eleger deputada estadual em São Paulo. “A princesa assinou a lei no dia 13 e no dia 14 os negros estavam com uma mão na frente e a outra atrás. Vai fazer o que sem condição nenhuma de política pública para que estivesse realmente liberta?”
A abolição da escravidão trouxe liberdade, mas ignorou a igualdade: a Lei Áurea não veio acompanhada de nenhum projeto de inclusão social
A implantação do sistema de cotas foi um ponto importante na luta pelos direitos da comunidade negra. A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, formou apenas sete mulheres negras em mais de 120 anos de existência. Larissa Mendes, que estuda na faculdade, faz parte da Poli Negra, grupo que trouxe a discussão sobre cotas para a instituição e mostrou por meio de um plebiscito que 70% dos alunos as apoiavam em 2017. Por conta da iniciativa, no mesmo ano, o Conselho Universitário da USP aprovou cotas sociais e raciais. Segundo Larissa, a luta por cotas é uma forma de reparação histórica. “São medidas importantes para a gente conseguir se preservar com aquela chama de esperança que pelo menos através do conhecimento a gente pode chegar a alguma coisa”, afirma. Para a estudante, essa é uma solução temporária. “[As cotas] não têm como objetivo ser para sempre, mas é para durar enquanto a gente tiver uma diferença entre negros e brancos nas universidades e em todos os outros espaços da sociedade”, diz.