Experimentos de teatro, dança e intervenção urbana prometem exercitarempatia e sustentabilidade, além de denunciar violências
Dez grupos de dança e teatro se espalham por praças, parques e equipamentos culturais de Cuiabá, a partir do dia 28 de fevereiro, dando início à residência artística que promoverá uma ocupação inteligente dos espaços públicos da cidade. A iniciativa surge como uma forma de democratizar o acesso a arte, aproximando população e artistas no processo criativo de montagem de espetáculos.
As propostas foram selecionadas pelo projeto Arvinte – Artes em Residência 2020, idealizado pelos artistas e produtores culturais Caio Ribeiro e Luiz Marchetti e contemplado no edital da Prefeitura de Cuiabá. O incentivo que poderia atender a um só projeto, eles optaram por distribuir recursos e multiplicar as ações serão desenvolvidas até o dia 27 de março.
O ciclo de apresentações dos trabalhos – estejam finalizados ou em progresso – começa no dia 28 de março e termina em 16 de abril. Os experimentos de teatro, dança e intervenção urbana prometem exercitar práticas como a empatia e sustentabilidade, bem como denunciar violências contra corpos e populações marginalizadas. Conheça quais são eles:
1. Brincando de reciclar com o Siminina
Brincar reciclando – ou reciclar brincando – também é fazer arte. Essa foi a proposta dos bonequeiros do grupo SpectroLab para o Arvinte. A ideia é entrar no plano pedagógico de um projeto social durante a residência para trabalhar conscientização ambiental, desenvolvimento artístico e, como resultado, reunir a criançada em cena.
“Queremos ouvir o que eles têm vontade de fazer em oficinas de reciclagem, partindo não só da nossa experiencia, mas da criatividade das crianças”, explica a atriz Millena Machado, que tem o Programa Siminina em mente para realizar o projeto.
Para isso, ela e o ator Douglas Peron vão ensinar crianças a dar formas animadas a diversos materiais descartados e recolhidos pelos artistas desde 2018. A experiência deve culminar em uma intervenção urbana no Parque das Águas, onde os artistas encontraram um espaço propício para tratar da questão do lixo e ciclo d’agua em Cuiabá.
2. Transformando o olhar em dança
O grupo Diamond Dance Crew quer levar seus bailarinos para as ruas e transformar em jogos de dança expressões e trejeitos de quem passar por eles. Tudo na base do improviso, da criatividade e leitura subjetiva do indivíduo comum. Trata-se de um exercício de olhar o outro e interpretar o diferente.
O diretor Jamilton Mello conta que um experimento parecido já foi realizado pelo grupo, onde a ideia era “dançar” a arquitetura do Porto. “Agora, o que a gente pensa em desenvolver durante nossos encontros é como imaginar as histórias das pessoas”, conta.
A residência será realizada no Espaço Mosaico, Centro, até ocupar o Parque da Nascente, no bairro Morada do Ouro. O espaço recém-criado pela Prefeitura de Cuiabá também contempla bairros periféricos da região, como Tancredo Neves, Centro América, Bela Vista e Carumbé. “Escolhemos o Mosaico porque ali é a nossa casa. Já a Morada do Ouro é um lugar bem diferente pra nós”, explica o artista.
3. Experimentando o número 3
A ideia do trabalho conjunto entre a bailarina Elka Victorino e as atrizes Tatiana Horevicht e Juliana Capilé surgiu com a participação das três artistas em festivais e residências internacionais, na Dinamarca e no Cabo Verde, em oficinas sobre treinamento do ator/bailarino.
Depois de compartilhar experiências com artistas do mundo inteiro, o número três começou a “persegui-las”, brincam. Tal geometria que simboliza frutificação, poder, multiplicidade, interação social e unidade entre mente, corpo e espírito irá guiar as imagens e ações do espetáculo como nome provisório “Tríade”.
“O processo de montagem contará com a dança contemporânea e a metodologia da partitura de ação, para a criação de uma dramaturgia espacial e corporal”, diz a proposta do projeto, que também ocupará o Misc.
4. Um grito contra o feminicídio na Praça Alencastro
“Contidas Nunca Mais” é o primeiro espetáculo do núcleo de mulheres do grupo Cena Livre de Teatro. O trabalho foi desenvolvido a partir de uma esquete criada pelo grupo, que escolheu como tema a menopausa precoce e refletiu sobre a interrupção do ciclo feminino pelo estresse da sociedade patriarcal.
“Então propus para as atrizes que fizéssemos umapesquisa sobre feminicídio a partir de noticiários, poesias, músicas disparadoras e incluímos também histórias particulares. A ideia foi abordar a relação da sociedade com o sangue de vida, mas também é derramado pela violência”, conta a atriz e diretora Ana Carolina Mello.
Na residência, que ocupará a Praça da Alencastro, a ideia do núcleo, atualmente composto por sete mulheres, é desenvolver o terceiro ato da peça que conta comdramaturgia coletiva. “Queremos avançar na pesquisa sobre a mulher trans e pensar em como incluí-las nessa abordagem”, explica.
5. Denúncia à violência doméstica nas lentes e no palco
“Coió” passará por residência no Centro Audiovisual Luiz Marchetti (Calm), a morada do Arvinte. O trabalho, que teve exibição única no local, nasceu do encontro entre os atores Caio Ribeiro e Douglas Peron, e foi criado a partir de situações de violência doméstica sofridas pelas mães dos artistas que ecoaram na vida de todos das famílias.
Marchetti somou à encenação com a técnica cinema expandido, dirigindo uma espécie de filme ao vivo. “Durante a peça, você tem a opção de olhar apenas para o telão e assistir o resultado que a câmera editada na hora gera, ou olhar para baixo e ver o Douglas manipulando bonecos, enquanto o Caio lê e interpreta relatos”, explica o anfitrião do Artes em Residência.
O espetáculo também conta com depoimentos de mulheres que vivem em casa de amparos em Cuiabá, vítimas de violência. “Agora estamos em um outro momento, pensando outras situações”, destaca Marchetti.
6. Uma vida provisória no Clube Feminino
“Vida Provisória” é um monólogo encenado pela atriz Edilaine Duarte, que transformará o Clube Feminino em seu próprio lar durante a residência, realizada em parceria do coletivo Coma a Fronteira. “Vou ocupar aquele lugar como se ele fosse minha casa, e a história vai se desenrolar da relação com o espaço”, explica.
A dramaturgia será composta por relatos pessoais da jovem sobre família, relacionamentos amorosos, nascimento, violência e descoberta de suas origens. “A ideia surgiu no momento em que percebi que vivia uma vida provisória. É uma reflexão de como a gente cria um ideal e vive em modo de espera”, complementa.
7. A história de um mundo livre contada no Pedra 90
O “Conto do Vigário”, escrito por Luisa Lamar, ia originalmente para o Youtube. Mas com a oportunidade da residência artística, a história de um mundo onde todos eram livres e não havia distinção de gênero, nem de sexualidade, será apresentado aos moradores do Pedra 90através da contação de histórias e do movimento de corpos não-binários
A ideia da artista foi traduzir a obra de Engels, “A Origem da Família”, sem rebuscamentos. “Foi uma leitura complicada. Mesmo estudando muito, quebramos a cabeça para entender aquelas coisas. Então pensamos em como passar aquele conhecimento para as pessoas que não tiveram o mesmo privilégio que o nosso”, explica Luísa.
Na praça central do bairro, enquanto Luisa narra o conto, a amiga e atriz Raphaelly Luz, ambas travestis e acadêmicas, performará a narrativa sobre o desejo de se viver livremente.
8. Desanestesiando os sentidos no Centro Histórico
Na correria do dia-a-dia, detalhes da cidade e populações invisíveis passam despercebidos aos nossos olhos. O Theatro Fúria quer então desanestesiar os sentidos, a partir de um laboratório realizado pela dupla Péricles Anarkos e Carolina Argenta no entorno do Misc e região do Beco do Candeeiro.
“A ideia parte de um experimento que fizemos no Centro da cidade, onde a missão era conversar com pessoas que nunca tínhamos conversado, figuras e lugares que a gente as vezes vê nas ruas, mas não dá muita atenção”, conta Péricles.
Durante a residência, eles querem desenvolver a experiência junto a outros artistas interessados, que resultará em uma intervenção urbana de performances. “A finalidade é perceber como e por que empobrecemos nossas percepções em relação ao mundo que vivemos e a nós próprios”.
9. A história do invisível menino gordo
Em “O Invisível Menino Gordo”, cantora e atriz HendSantana protagonizará a história de um menino índio e gordo que abandona sua aldeia e seu pai em busca de alimento e fartura para o seu povo. A dramaturgia é inspirada em um mito contato por diversas tribos da América Latina e também deve ser desenvolvida e encenada no Misc.
A partir da dramaturgia, o projeto vai colocar em cena questões afro-indígenas, fazendo um paralelo entre Cuiabá e o Brasil da escravidão. A peça de teatro também deve misturar outras linguagens artísticas, como a música e o audiovisual. “A peça vai falar de muitas coisas que as pessoas não sabem sobre a história de cidade, que envolve toda essa herança imperial”, revela Hend.
10. Um tour pelo inferno
Como é possível se levantar depois de uma violência? Como encontrar forças para (re) existir? Sensibilizados pela história do garoto que foi morto pelo pai por lavar louça, o diretor Einstein Halking e o bailarino Michell Charlles pretendem buscar respostas na criação de um solo de dança que mistura diferentes estilos, como o jazz, streetdance, stiletto e voguing.
Para idealizar o espetáculo “/Mic_hell” – traduzidos por Einstein como um “tour pelo inferno” – eles entrevistaram mulheres negras, gays, lésbicas e transexuais que já foram vítimas de violência física, verbal e mental. Essas histórias irão ganhar corpo e movimento com a ocupação do Museu de Imagem e Som de Cuiabá (Misc).
“Não é um espetáculo fofo, bonitinho. Nós nunca fizemos nada para despertar sorrisos e esse não será diferente”, alerta o diretor.
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Lidiane Barros